Resiliência compulsória ao absurdo: O Cansaço como política de controle
- Onivaldo Coutinho

- 22 de set.
- 6 min de leitura

A resiliência compulsória representa uma perversão do conceito tradicional de resiliência. Enquanto a verdadeira resiliência deveria ser a capacidade humana de superar adversidades e se adaptar de forma saudável, a resiliência compulsória funciona como uma imposição social que normaliza condições inaceitáveis de vida e trabalho. É a exigência de que as pessoas se adaptem infinitamente a situações precárias, ao invés de questioná-las ou transformá-las.
O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han descreveu com precisão nossa condição atual em "Sociedade do Cansaço": vivemos uma era de "violência neuronal" onde "as pessoas se cobram cada vez mais para apresentar resultados - tornando elas mesmas vigilantes e carrascas de suas ações".
Para Han, "a compulsão de realização à qual nos sujeitamos vai para além do trabalho. Está conosco nas horas de lazer, nos atormenta até durante o sono e, muitas vezes, nos faz passar noites sem dormir". Esta é a materialização perfeita da resiliência compulsória: o indivíduo se torna seu próprio algoz. A diferença crucial é que "o sujeito de desempenho se entrega à liberdade coercitiva ou à livre coerção de maximizar o desempenho. O excesso de trabalho e desempenho agudiza-se numa autoexploração. Essa é mais eficiente que uma exploração do outro, pois caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade".
Hoje, segundo Han, "os habitantes dessa nova sociedade não se chamam mais 'sujeitos da obediência', mas sujeitos de desempenho e produção".

Há uma ilusão de jornada do heroi em que todos nós nos cobramos a ser o grande protagonista do mundo, de um belíssimo mundo de poucas estrelas. Uns justificam a jornada vitorias com o estudo, mesmo quando outras pessoas estudaram tanto quanto ou mais e não chegaram nem perto da fagulha do sonho. Temos uma moeda muito peculiar que gira silenciosamente e lastrea boa parte das nossas transações humanas. A moeda do valor social artificialmente atribuído a cada "que chegou lá". Mesmo tendo 77 milhões de concorrentes, que são agora inúteis e descartáveis.
Essa moeda te atribui muitos benefícios. Médicos de índole maliciosa podem parar de estudar e operar por "convicções arbitrárias", mas continuam sendo vistos como autoridades inquestionáveis. Professores que se dedicam diariamente ao desenvolvimento intelectual de dezenas de pessoas são tratados como "doutrinadores" suspeitos.
Esta distorção impede que vejamos claramente como a resiliência compulsória opera: algumas profissões são forçadas a aceitar precariedade como "vocação", enquanto outras mantêm credibilidade mesmo quando deveriam ser questionadas.
Um dos benefícios mais desastrosos dessa moeda é se ter o direito ao sono regular e irrestrito. Sem barulhos, sem alarmes, sem ansiedades pelo repetir dos dias. O neurocientista Sidarta Ribeiro defende uma perspectiva singular sobre essa cultura de insônia que estamos vivendo ou quem sabe estejam nos impondo, certo ou não, Sidarta diz que o sono deve ser discutido como política pública. Para ele, "a base da saúde mental é sono, alimentação e exercício físico de qualidade".
Ribeiro observa que "o jeito de sonhar da sociedade urbana contemporânea é muito ruim. Os sonhos não são sobre a comunidade. Precisamos unir a ciência com os saberes não científicos para construir sonhos que aumentem o vigor da coesão social".
A proposta de Ribeiro guia para uma "discussão mais profunda sobre modelo de sociedade": "Se todo mundo do planeta puder morar direito, dormir direito, sonhar e compartilhar seus sonhos, fazer exercício físico, comer comida sem veneno, tendo os robôs fazendo trabalho para nós, isso aqui vai ficar muito bom!"
O direito ao sono adequado, ao lazer, ao descanso, não são luxos - são necessidades biológicas fundamentais. Sua negação é uma das formas mais recorrentes da resiliência compulsória.
Como observa Ribeiro, os sonhos funcionam como "verdadeiro oráculo probabilístico" onde "memórias são rearranjadas para prever e ensaiar futuros possíveis, antecipando riscos e oportunidades". Privar as pessoas do sono adequado é impedi-las de imaginar futuros alternativos.
Quando levamos o olhar para os verdadeiros sintomas, estão muito próximos de nós. O estudante que trabalha e que concilia trabalho e estudo não por escolha, mas por necessidade, e ainda assim é comparado com quem pode se dedicar integralmente aos estudos. Quando esse estudante reclama do cansaço, ouve que "está se vitimizando" ou que "tem que ser mais forte". Talvez ele esteja sendo forte o suficiente. Até no cuidar do corpo físico, ponto muito importante para o desenvolvimento eficiente de conhecimento, muitos estudantes bem-sucedidos em vestibulares e concursos frequentemente têm uma rotina de exercícios, alimentação adequada e sono regular - o que deveria ser básico para todos, mas se tornou privilégio de poucos.
O medo de dormir: estudantes que desenvolvem ansiedade em relação ao descanso, acreditando que dormir é "perder tempo de estudo", quando na verdade o sono inadequado prejudica drasticamente a capacidade de aprendizagem.
O trabalho remoto nem se fale,. deveria oferecer liberdade para organizar melhor a produtividade, mas se transformou uma sensação sufocante, como se o trabalho não desgrudasse da pele. A ideia original era aumentar a produtividade através da autonomia, mas virou apenas uma forma de levar o trabalho para lugares ainda mais íntimos da existência.
Por outro lado, existem alguns poucos profissionais que trabalham 3-4 dias por semana (isso quando muito) e ganham 10-20 vezes mais que aqueles que trabalham quase todos os dias. Quando questionados, se justificam pelo "estudo" - mesmo que outros tenham estudado tanto quanto. Mas ainda sim a resposta é "escolheu, agora aguenta". Isso é resiliência compulsória, quando nem você mais decide o que merece ganhar pela própria jornada.
Além de todo esse mundo distópico do dia a dia, tem o transporte público degradante, aceitar ônibus superlotados como "realidade" ao invés de exigir transporte digno também é resiliência compulsória.
Violência como "fato da vida": a ideia de que reclamar da violência urbana é "choramingo" e que a única solução é "sair do bairro". Detalhes tão bem descritos por Conceição Evaristo, mas tão tristemente reais além do imaginário literário. São mortes de pessoas, gente perto ou longe, que tem um mísero segundo de tela no jornal. Mortes evitáveis, mortes criadas em condições precárias onde a sanidade briga com a resiliência compulsória.
Hannah Arendt mostrou como "pessoas comuns" mantêm estruturas de mal através da ausência de pensamento crítico. A perversidade pela ignorância, quando você nem nota que está dilacerando a realidade de outra pessoa, apenas o pratica por convenção social. A banalidade do mal é "a condição de enredamento de pessoas em um sistema ideológico que encobre a consciência acerca dos males praticados".
A resiliência compulsória é uma forma contemporânea de banalidade do mal. Quando normalizamos:
Jornadas exaustivas como "dedicação"
Invasão da vida privada pelo trabalho como "flexibilidade"
Burnout como "fraqueza individual"
Precariedade como "realidade inevitável"
Estamos participando da manutenção de uma forma de trabalho que produz sofrimento em massa.
Você confiaria num profissional que não dorme há três dias?

Convivemos diariamente com professores que têm sono ruim, enfrentam turmas barulhentas, lidam com alunos que dormem na aula ou que simplesmente se recusam a aprender. Médicos, policiais, enfermeiros - todos operando em estado de exaustão crônica.
A sociedade normaliza essa precariedade como se fosse inevitável. Mas imaginem se todas essas pessoas tivessem acesso a condições que as tranquilizassem, se pudessem exercer suas profissões sem a pressão constante da sobrevivência, se aquela aula ou consulta não fosse tão desesperadamente importante para sua subsistência.
Sidarta Ribeiro explica que durante o sono "as novas memórias que foram adquiridas na vigília são integradas e, ao mesmo tempo, muita coisa inútil é jogada fora". Privar as pessoas do sono adequado é, literalmente, impedi-las de processar adequadamente suas experiências e de imaginar alternativas.
O primeiro passo é identificar quando a "resiliência" está sendo compulsória:
Esta situação deveria ser aceita como normal?
Quem se beneficia da minha "adaptação" a estas condições?
Por que eu devo me adaptar, ao invés de a situação ser transformada?
A resiliência compulsória representa uma das formas mais sofisticadas de dominação contemporânea: transformar a própria capacidade humana de resistência em ferramenta de exploração.
Como alerta Han, "distúrbios psicológicos como a depressão ou o esgotamento (burnout) são sintomas de uma profunda crise de liberdade". Esta crise não será resolvida medicalizando os sintomas, mas transformando as condições que os produzem.
A verdadeira resiliência não é adaptar-se infinitamente ao inaceitável. É manter a capacidade de indignação, de recusa, de sonhar com alternativas. É recuperar o direito ao cansaço, ao descanso, à vulnerabilidade - direitos fundamentais que nos foram roubados em nome de uma falsa "positividade".
Como propõe Sidarta Ribeiro, precisamos recuperar a capacidade de sonhar coletivamente, de imaginar futuros onde o bem-estar seja universal. Isso exige, primeiro, o reconhecimento de que estamos doentes de cansaço - e que isso não é normal, não é inevitável, e não deveria ser aceito.
A sociedade do cansaço pode ser superada, mas isso exige que paremos de naturalizar nossa própria exaustão e comecemos a questionar as estruturas que a produzem.
Fontes principais:
HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
RIBEIRO, Sidarta. O Oráculo da Noite. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

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