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Dois Brasis em 25 anos


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Já parou pra pensar como 25 anos podem mudar completamente a forma como a gente enxerga um país? É o que acontece quando colocamos lado a lado Iracema, de José de Alencar (1865), e O Cortiço, de Aluísio Azevedo (1890).


De um lado: "Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna…"


Do outro: "Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas."


Parece que estamos falando de dois Brasis que nunca se encontraram, né? Um é perfumado e poético; o outro, barulhento e cru.

Alencar escrevia quando o país ainda engatinhava na independência. Precisávamos de um mito de origem, algo que soasse nobre, quase sagrado. Ele entrega um Brasil edênico, cheio de natureza exuberante, mistura de índio e europeu, como se dissesse: olha de onde viemos, olha como somos especiais.


Só que 25 anos depois, Azevedo estava olhando para uma realidade impossível de dourar: cortiços lotados, imigrantes, ex-escravizados, urbanização sem regra. O "sonho romântico" vira um retrato social que cheira a mofo e suor. O retrato de uma Brasil construído as pressas e que não teve lugar para todo mundo subir.


E é aqui que o contexto faz toda a diferença. Um estilo literário se impregna ao contexto e vice-versa, pois são uma construção em cima de outras visões já vividas por outros humanos. Literatura passa a ser um documento histórico do pensamento, por mais abstrato que fosse, revelador de uma cultura daquela época.


Alencar, político do Império, aveludava o Brasil num discurso ufanista e idealizado, como um espaço quase etéreo e sublime na terra. Isso não é casual, é propaganda. Azevedo, filho da República recém-nascida, dá vida ao próprio cortiço: "acordava, abrindo". Essa personificação pouco a pouco se agiganta numa ironia mordaz que vai denunciar vários problemas vividos por aquelas pessoas. Tão brutais que a própria linguagem precisa os documentar como marginalizados, pois infelizmente era isso que essas pessoas eram e não dá pra florir o esgoto a céu aberto.



A intencionalidade nos dois textos é visível e é por isso que contextos nos ajudam a perceber melhor que ponto de vista está sendo visitado. Quando você lê um texto e leva sua ideia de mundo junto, dificilmente ela será vista perfeitamente no texto de outro alguém. Por isso ler nos permite caminhar por essas memórias criadas ou registradas e fazer nossa interpretação.

Alencar usa uma sintaxe quase clássica, com comparações que remetem ao épico greco-romano. "Mais negros que a asa da graúna" é construção de Homero adaptada ao tropical. A ideia dele sempre foi essa, criar o herói nacional indígena, ou quase isso.

Já Azevedo quebra essa solenidade com ironia: "não os olhos, mas…" — é uma correção dentro da própria frase, como se dissesse "não se engane, isso aqui não é poesia".


Quando Alencar escolhe "mel", "baunilha", "perfumado", está criando um campo semântico de prazer sensorial. O Brasil vira objeto de desejo, lugar que seduz.

Quando Azevedo usa "cinco horas da manhã", "infinidade", "chumbo", constrói um campo da mecanização e peso. O Brasil vira máquina que esmaga.


Esses vieses de um mesmo Brasil nos ajudam a preencher todas as lacunas vividas nos séculos sem que a se perca o lado imagético da natureza de Alencar e que não fosse tão distante da realidade escancarada por Azevedo.


Uma propaganda que fala em "paraíso tropical" ou um documentário que diz "a cidade que não dorme" o que é? Percebe como, sem contexto, a gente engole qualquer narrativa? Se você não sabe que Alencar estava criando um Brasil que nunca existiu, corre o risco de acreditar num país utópico que nem respeitava direito a imagem do próprio povo indígena. Se não entende a denúncia de Azevedo, pode achar que violência urbana é só "um problema recente".


A questão é que essas estratégias discursivas atravessaram séculos. Quando um influencer vende o "Brasil real" através de imagens filtradas do interior, está usando o kit de ferramentas do Alencar. Quando um jornalista denuncia a precariedade urbana focando na massa anônima, está ecoando Azevedo.


"Lábios de mel" não é "boca". "Infinidade de portas" não é "muitas portas". Esses detalhes constroem ou distorcem.


O interessante é que ambos os autores usam personificação, mas com funções opostas. Alencar humaniza a natureza para torná-la acolhedora: Iracema é quase uma extensão da paisagem. Azevedo humaniza o espaço urbano para mostrar como ele devora quem coabita com esse espaço, zoomorfismo que também nos revela o determinismo como ferramenta de apresentação da denúncia.


Ler tudo para entender o contexto é melhor que o recorte específico do tempo que não pode ser usado para resumir e nem deve. Afinal, será mesmo que todo mundo amava o mundo Brasil como Alencar? Aluísio exagerou? A verdade é que o ufanismo de um e a denúncia de outra devem ser visitadas justamente para que esse ponto de vista nasça de nós e da nossa comparação dessas obras, desses pensamentos do mesmo século.


Tem uma coisa que esses 25 anos entre os dois textos nos ensinam: o contexto não é enfeite. É o que determina se uma metáfora funciona como sedução ou crítica, se uma imagem constrói ou desconstrói a visão de um mesmo século.


O Brasil real sempre foi uma mistura de perfume e poeira. A literatura estuda exatamente o processo de entender e investigar o que se conta, como se conta e em que época se conta.


E é por isso que contexto nunca é luxo. Porque quem não entende de onde vem o discurso que consome, acaba sendo consumido por ele.

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