Nós perdemos os nossos idosos para as telas (reflexão)
- Onivaldo Coutinho

- 8 de set.
- 11 min de leitura
Atualizado: 29 de set.
Há muito tempo a nossa relação entre mãe e filho pautava em quem estava no controle sobre determinadas atividades. As mães não gostavam que a gente passasse o nosso lazer muito, muito, muito, muito frente às telas. Boa parte das mães e dos filhos que estão lendo isso aqui podem ter crescido na adolescência ou até mesmo na infância ouvindo os pais falarem que não era pra você ficar tanto tempo na tela. Seus pais provavelmente cresceram numa época em que a tela deles era a realidade. Em que o tempo que eles perdiam indo até um lugar, o caminho. E isso faz muita diferença no momento que a gente enxerga o que a gente vai fazer.

Quando a gente observa o caminho somente sendo sair de casa até chegar no meu trabalho, ter o foco no trabalho como uma atividade exaustiva. Que por mais que ela seja legal de ser feita, quando você fica fazendo toda semana a mesma coisa, a mesma coisa, a mesma coisa e tendo que ter um esforço máximo pra que essa pessoa que esteja assistindo também foque, ao invés de ter o esforço máximo pra o que é o conteúdo e a gente debater sobre isso, acaba que chegar nesse projeto que pode ter nuances muito legais como observar uma paisagem, observar uma estrutura da cidade, perceber como isso atrapalha ou não o fluxo, perceber quais lojas tem ao seu redor, o que você vai precisar em algum momento, seja esquecido. O caminho virou um obstáculo irrelevante.
E a gente vai tornando tão imediata essa atividade de querer sair de casa pra chegar no trabalho que a gente esquece que existem outras coisas que a gente pode fazer e que a gente pode precisar das informações que chegam até alí.

E isso era uma coisa que a minha mãe sempre falava. A gente não pode deixar de ver o mundo assim, faz outra coisa, vai sair. Mas era aquela coisa, sai duas horas da tarde e volta seis horas da tarde. E não tem discussão. E assim, por muito tempo eu cresci dessa forma. E ai eu percebi que tela é uma palavra muito pequena para o tanto de coisa que o mundo tem.
Um determinado dia, voltei 23 horas da noite para casa, eu simplesmente fiquei preso na tela, jogando videogame com um amigo depois do futebol na casa dele, até que a mãe dele chegou pra mim e falou assim:
meu filho, você vai dormir aqui em casa porque já tá bem tarde?

Aí eu fiquei caramba, bem tarde quanto?
Pensei que era umas nove horas da noite. Não, na verdade já eram onze e pouco.
E aí eu saí correndo, a rua escura. O meu apartamento era no meio da avenida. Assim como todos os outros que ficavam lá. E aí eu saí correndo pra casa e quando eu cheguei em casa, já tinham várias pessoas que estavam me procurando pelas ruas adjacentes.
Isso me fez perceber o quanto me ligar na realidade, o quanto a tela me tirava disso e o quanto é importante falar sobre isso. Porque quando a minha mãe percebeu que eu tava chegando tarde, ela não brigou comigo na frente de todo mundo porque ela apenas tava preocupada, mas ela também sabia que eu tinha feito alguma coisa que não era pra ter esse susto todo. Mas aí ela chegou e falou, sobe. Eu cheguei em casa, ela perguntou o que eu fiz, onde é que eu tava. E aí eu falei, mãe, me desculpa, eu tava jogando videogame na casa do meu amigo e eu realmente não sabia.
Só que minha mãe era uma pessoa que tinha uma carga histórica muito grande de passar por situações muito pesadas, então ela ainda não tinha a inteligência emocional que ela tem hoje. E nem acredito que ela deveria ter. Com toda a dificuldade de me criar sozinha, eu tinha 7 anos quando a gente começou a morar "só", e isso foi sendo aprofundado por muitos problemas. Eu fui meio que responsabilizado muito cedo por muitas coisas em relação a cuidar de mãe, de irmã, de tia, que tinham relacionamentos bagunçados.
Então, a minha infância foi muito doida, mas ao mesmo tempo eu percebi uma preocupação muito grande da minha mãe de evitar que eu encostasse em ameaças ruins pra minha vida. Eu sei muito bem quais são essas ameaças. Ela falava muito sobre determinado grupo de pessoas, que usava determinada coisa, sobre como determinado comportamento poderia me transformar numa pessoa ruim, e ela dava referências básicas ali, como xingar o coleguinha na escola, mas isso ia cristalizando na minha cabeça como uma conduta positiva.
E ao mesmo tempo eu tinha muita raiva dela, porque eu percebia que às vezes ela me punia de uma forma que eu não precisava, que se ela conversasse comigo, eu entenderia melhor. E por mais birrento que a gente fique, é igual aquele bichinho que tá nervoso quando você vai dar a ração, ou não vai dar o remédio, vai dar a vacina nele, ele tá nervoso porque ele não sabe o que é aquela merda, ele não sabe, não é comum pra ele aquela atividade. Então como não é comum, a reação sempre é muito inovadora. É por isso que algo vai perdendo a graça quando você faz toda hora. E aí é por isso que o trabalho acaba se tornando esse lugar muito difícil de se estar.
Então quando você observa toda essa trajetória que você fez, sendo acelerada por um Uber ou por uma moto ou transporte coletivo lotado, você também olha mais pra tela, você entra nos carros, o motorista tem que trabalhar olhando pra isso, olha pouquíssimo pra realidade, que é o ponto. E aí a gente concentra a nossa realidade toda nessa tela. E tudo que a gente vê, conversa, fala, tem a ver com isso.

Mas a tela é um problema? Depende. O problema é você estar nos mesmos ambientes o tempo todo. Porque, por exemplo, eu volto e meia, minha mulher sabe disso, eu volto e meia, fico irritado com a minha timeline do YouTube, porque eu mesmo escolhi ver aqueles conteúdos, mas eu saturei de tanto que eu vi aqueles conteúdos, aprendi muita coisa, fui ler outras coisas atrás, ou então só ignorei. Mas chega um momento de conhecer outra ideia.
Mas depois de um tempo, isso acaba se transformando numa situação em que você se distorce tanto da realidade, e aí tudo que é falado na internet parece que é a vida. Então é por isso que é tão fácil cair em conspiração. Ao invés de as pessoas estarem aprofundando o seu conhecimento sobre aquilo que elas desejam aprender. Não, elas concordam pelo viés de confirmação, que já foi implementado nelas por esse mesmo conteúdo, a aceitar essa informação como sempre sendo a Verdade.
E onde é que isso pode ser perigoso? Aí é que a gente chega num momento muito, muito, muito, muito crucial pra essa realidade. As nossas mães perderam a batalha contra o celular. Aquelas mesmas mães que diziam que a gente não deveria ficar muito tempo na tela, porque a gente deveria fazer alguma coisa, a gente deveria sair de casa, elas estavam certas.
E elas estavam tão certas que algumas pessoas conseguiram se equilibrar, mas depois acabaram caindo no vício em tela, porque é uma tentação perturbadora. Tá na sua casa, tá na sua sala, tá no seu espaço de trabalho, tá no seu espaço de lazer, tá no seu espaço de espaço, tá no seu bom dia, no seu anoitecer, é a última coisa que você vê. E a gente nem sabe até que ponto esse compartilhamento de cérebro vai nos degenerar.
Nesse tempo, eu vi o Drauzio Varella postando um vídeo sobre a ideia que as pessoas têm de como a tela não é nociva pra elas. Porque quando a gente fala que a tela é perigosa, principalmente pra uma criança, o pessoal acha que é perigoso porque vai ficar viciadinho. Sim, vai ficar viciado, mas vai modificar a forma como o seu cérebro desenvolve.
É muito importante a gente entender que tem várias habilidades que a gente acha que a gente tem, mas que a gente não tem, e que elas foram surgindo e a gente vai desenvolvendo. Sabe aquela criança que você vê, que fala assim, ela é tão desenrolada, provavelmente os pais dela desafiam ela no sentido de conversa, estimulam a ideia dela a ser explorada. Ler, senso crítica, percepção da realidade, tudo isso são habilidades importantes que, quando acreditadas serem inatas, elas simplesmente podem ser confundidas com outra coisa que simule muito razoavelmente o ler, o pensar e o discutir além do ponto óbvio.
Às vezes teu filho vem falar que ele tá muito bom no videogame, aí tu fala, é filho, tá bom. Mano, pergunta, e aí, por quê? O que você aprendeu? Ah, porque tem um bonequinho novo. Você não faz ideia do que é, mas isso mostra atenção, deixa ele falar. E isso é importante. Muitos pais querem só passar regra, regra, regra, regra, regra, e aí não deixam a criança viver, não deixam a criança experimentar o erro, e isso é super importante.
Então, nossos pais, eles brigavam muito para que a gente tivesse o mínimo possível de problemas fora de casa. Então, a gente ficava sempre muito perto de casa ou quase nunca saía de casa. Pelo menos eu cresci assim. Essas mães, elas queriam que nosso lazer fosse sempre perto de casa, futebol, queimada, correr ali mas nunca tão longe.
Só que essas mães começaram a achar também que era muito perigoso que os filhos ficassem muito tempo dentro de casa. Como, por exemplo, poderiam ficar sedentários, poderiam perder muito tempo da vida ao invés de estar conhecendo as experiências fora, botar o pé numa terra. Viver mesmo, integrar-se ao ambiente, participar da vida, ser gente no meio de gente. E não, aí a mãe começou aos poucos a ser convencida de que o filho ficar em casa, dentro do quarto, aquela tela, é menos perigoso.
E eu não quero falar aqui sobre os grandes problemas que a mídia transformou em um debate assim foda e super necessário. Mas eu quero falar, dialogar com esse problema, mas pra outra idade, que são os mais velhos. Eles foram capturados de uma maneira brutal pela internet.
A gente que cresceu vendo esse desenvolvimento com o cérebro mais ciente do que o virtual e com mais tempo pra aprender as demandas, foi percebendo que existem várias linguagens dentro da internet. E muitas dessas linguagens são verdadeiros enigmas pra quem tá chegando agora. Então, determinados memes, eles são específicos de uma bolha, mas podem expressar reações completamente diferentes da intenção inicial, se eles forem tirados do contexto.
As pessoas não debatem essa proporção, porque a vida delas está muito preocupada em exatamente ser aquilo que os outros querem que ela seja. A vida dela tá virando uma trend. E quando a gente é pego por isso na parte idosa, você entra num tiktok da vida, tem vários caminhos pra essa pessoa ser. A grande maioria deles vai te levar pra caminhos extremos.
E esses idosos, muito solitários pela ausência da realidade de filhos, pelos problemas que passaram na vida e que muitas vezes os levaram a um ponto da vida adulta, que eles talvez imaginassem diferente, isso vai meio que morrendo a vontade de sonhar.
Tem até um conto da Marina Colassanti chamado "Uma Ideia Toda Azul", que é um ótimo conto pra você debater em família. Que é a ideia de como a participação familiar na realidade, lendo, conversando, fazendo a criança se sentir importante é crucial esse equílibrio. Você pode até internamente achar, meu Deus, o que ele está falando é tão óbvio. Exato, mas é óbvio pra você. Não pra criança, ela não nasceu com essa informação, então pra ela descobrir isso vai ser incrível. E deixa ser incrível, permita que seja incrível.
Só que daí os pais estão começando a acreditar fielmente que tudo que a internet fala é realidade. A gente vê cada vez mais conspirações sendo colocadas como se fossem o ponto da realidade, do ponto central do mundo. Tem um livro, "O Mundo Assombrado pelos Demônios", que fala bastante disso. De como esses demônios da fake news, da pós-verdade, estão distorcendo a realidade das pessoas de um nível muito, muito problemático. Que chega a ser descognitivo mesmo. Você observa pessoas acreditando em fake news como realidades alteradas e simulacros de pessoas importantes. Se elas fossem realmente levadas a informação verdadeira e material, muitas dessas pessoas perceberiam que várias dessas conspirações são e podem ser realizadas por caminhos menos poéticos e absurdistas e mais "chatinho", pois dá trabalho estudar e entender a realidade.
Os idosos perderam. É claro que nem todos os idosos estão à mercê da realidade virtual, mas muitos estão e se aglomeram nessa fagulha de verdade. Aquelas pessoas que tentaram nos fazer acreditar que a tela era um lugar ruim de se estar. Não pelos motivos específicos, mas porque você não se mexia, e que se mexer é importante. A famosa caminhada sempre foi o papo de muita gente. Então, todo mundo sabe que caminhar é importante, se mexer é importante, dar uma corridinha é importante. Essas pessoas perderam para as telas, assim como nós. Mas o ponto é mais sério, como alguém que entra num lugar tão complexo, sem entender como se chegou até esse ponto, pode ficar perdido por ali? O quanto o virtual consegue impregnar nas pessoas um medo verdadeiro? Mesmo que, materialmente, como a maioria dos medos, ele esteja bem longe de acontecer, ou não pelo caminho onírico que se escolheu acreditar. Quando a gente não desenvolveu numa geração um senso crítica mais aguçado dentro da internet, essa pessoa perde.
E aí, o que a grande maioria dos brasileiros tem na vida velha? Um pouquinho de dinheiro, se conseguiu superar todas as dívidas, e muito cansaço. E aí vem a tela. Começa. Toda hora, toda hora, ela vai ter tempo para a tela, igual uma criança. Isso aqui não é uma criança, é um adulto. Um adulto que muitas vezes é solitário, que foi abandonado pela família e perdeu. E perdeu ali, muitas vezes, a sanidade.
Esse adulto não vai procurar mais nenhuma referência. Onde antes ele dizia que eram as referências fortes, como por exemplo, um livro, um texto, um artigo. Esse adulto vai começar a acreditar em figuras que, de forma bem performática, apresentam suas ideias. E quanto mais performático, mais emocionado, mais forte tem aquele peso, tem aquela informação. E às vezes a pessoa pode só estar dizendo, o céu é azul! Vocês estão entendendo? O céu é azul! E as pessoas vão dizer assim, caralho, olha como esse cara é foda. Realmente ele está dizendo que o céu é azul.
Então esse tipo de memória sendo repaginada pelas experiências da internet, deixa aquela solidão ou até mesmo aquela vida saudável que o idoso poderia ter. E o pior, ele está trabalhando para aquela internet. Todos nós estamos trabalhando a partir do momento que a gente entra em contato com a internet. Tudo que a gente faz na internet gera lucro. E nem 1% desse dinheiro volta para a gente. Nada, nada, nada.
As monetizações do usuário são péssimas. Acho que nem existem na grande maioria das redes sociais. A única rede social que eu conheço que tem monetização do usuário, no sentido de você não precisar criar conteúdo em si, mas a participação, ver vídeo, dar like, comentar, eu acho que é o TikTok. Eu não sei outra. Mas isso é triste. E a pessoa está trabalhando ali.
E aí a pessoa começa a encontrar várias outras pessoas, elas começam a conversar sobre isso dentro da internet. E aí, quando se vê, está todo mundo junto. Porque eles queriam uma tribo também. Porque eles foram, sei lá, jogados para essa internet aí há muito pouco tempo e sem nenhum mapa, num lugar que qualquer viela errada te leva pra insanidade.
Então, talvez a próxima geração agora venha um pouco mais educada a se relacionar com a tela. E aí, provavelmente, ela consiga, porque vai chegar um ponto que as pessoas vão estar tão fissuradas em acreditar no que a tela diz, que quando a gente olhar a realidade, não vai ter mesma vontade de ser vista. Não porque ela não é incrível, mas porque ela não é imediata.
Por exemplo, para eu mover uma montanha de um lugar numa tela, basta pegar um mouse, segurar a montanha e seguir. Para eu fazer isso pessoalmente é muito mais complicado. E aí, de novo, aquele ponto de passar a ideia para o trabalho e esquecer o caminho. E a gente está esquecendo o caminho. Assim como nossas mães estão esquecendo o caminho.
E elas estão encontrando um caminho em conjunto. Que é fazer extremismos. E eu não estou falando de um único lado, não. Estou falando de vários. Vários extremismos. Extremismos de gênero, extremismos de povo. É uma loucura. É uma insanidade. Como se no final das contas as pessoas não fizessem parte de uma mesma espécie que precisa se harmonizar e cuidar melhor de si para poder interagir melhor com as outras.
Mas o maluco simplesmente ensandecido pelo desejo e pelo poder que ele tem de manipular tudo, ele quer cada vez mais que todo mundo vire um cérebro que gera ações para a internet. E os nossos pais foram fisgados. Infelizmente. E antes eram eles que nos resgatavam desse mergulho do instante.



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